Gonçalo Santos Andrade, presidente da Portugal Fresh
Presidente da Portugal Fresh, Gonçalo Santos Andrade é hoje uma das figuras mais influentes na projeção internacional do setor agroalimentar português. Com pensamento estratégico e discurso direto, defende que só com produção organizada, inovação constante e infraestruturas eficientes será possível tornar Portugal um verdadeiro exportador de valor. Em entrevista à iAlimentar, fala sobre desafios logísticos, certificações, alterações climáticas, geopolítica e os caminhos para um setor alimentar mais competitivo, sustentável e preparado para o futuro.
Conversar com Gonçalo Santos Andrade é olhar de frente para os grandes temas do setor alimentar português. Presidente da Portugal Fresh e com uma carreira construída em torno da promoção estratégica dos produtos nacionais, é uma das vozes mais pertinentes na defesa de um modelo alimentar que alie qualidade, sustentabilidade e ambição exportadora.
Nesta entrevista, realizada num momento em que o setor enfrenta pressões climáticas, económicas e políticas, Gonçalo Santos Andrade fala da necessidade de acelerar decisões, organizar melhor a produção e reforçar a competitividade das empresas, especialmente das pequenas e médias.
Logística, certificação, gestão da água e investimento público são pontos centrais da conversa — uma chamada de atenção para quem trabalha, todos os dias, para alimentar Portugal e o mundo com produtos de qualidade.
Mais do que análise, esta conversa é um roteiro claro para quem quer construir um setor alimentar mais forte, mais resiliente e com futuro. É, sobretudo, um apelo direto à ação.
Como avalia o grau de maturidade das empresas portuguesas nesta área? Quais os principais desafios estruturais ainda por resolver?
O setor das frutas, legumes e flores tem evoluído significativamente na eficiência logística, na cadeia de frio e na rastreabilidade, fruto de investimentos contínuos por parte das empresas. No entanto, é essencial investir numa rede logística nacional mais robusta e interligada que sirva eficazmente os mercados externos e permita a todas as empresas - pequenas e grandes - ter respostas adequadas às suas necessidades. Nos produtos frescos, usamos exclusivamente a via rodoviária pois é mais rápida e eficaz: em 24 horas estamos em Paris e entre 36 a 48 horas no centro da Europa, com a garantia de mantermos a cadeia de frio, a qualidade dos produtos e a sua frescura.
Na União Europeia há muito a fazer no transporte ferroviário.
Que investimentos ou soluções tecnológicas têm vindo a destacar-se? Há casos de boas práticas que possam ser replicados?
Há uma forte aposta em soluções tecnológicas desde o campo, até às centrais hortofrutícolas. O tempo entre o período de colheita e a entrada em armazém tem vindo a diminuir de forma acentuada e, na última década, o investimento no arrefecimento rápido a nível das centrais foi substancial. A maioria dos produtores e organizações de produtores transporta os seus produtos diversas vezes ao longo do dia com o objetivo de reduzir o tempo de permanência do produto no campo.
Portugal está a tirar proveito do seu posicionamento geográfico? O que falta para escalar?
Portugal tem desafios logísticos consideráveis pois não está entre os países geograficamente próximos de mercados com maior PIB per capita e poder de compra, que podem remunerar melhor os nossos produtos, como os Países Nórdicos, a Alemanha e o Reino Unido. Para contornar este obstáculo é necessário um maior grau de organização da produção e mais investimento em ligações logísticas nos próximos anos. Por outro lado, estamos bem posicionados logisticamente para o Norte de África e para a América Latina que são mercados interessantes para os produtos portugueses.
Como têm as empresas portuguesas respondido às exigências dos mercados internacionais?
As empresas portuguesas têm respondido com grande sentido de responsabilidade. Este é um setor altamente tecnológico e responde às exigências dos seus clientes internacionais de forma natural e integrada no negócio. Hoje, as empresas são dotadas de todas as certificações mais importantes, como a GlobalG.A.P. ou a GRASP (Global Risk Assessment on Social Practice), por exemplo, e os mercados externos reconhecem Portugal como um fornecedor seguro, competente e fiável. Esta resposta do setor é um reflexo do profissionalismo e da aposta constante em formação e melhoria de processos.
Que lacunas ainda identifica nas Pequenas e Médias Empresas (PME)? A Portugal Fresh atua nesse reforço?
Nas PME, as principais lacunas residem muitas vezes na capacidade técnica para manter sistemas de certificação atualizados e acompanhar as exigências regulatórias mais complexas. A Portugal Fresh contribui para este reforço através da partilha de conhecimento, da realização de missões a mercados com potencial e da presença em feiras internacionais, como a Fruit Logistica ou a Fruit Attraction, onde as empresas têm contacto com os melhores exemplos e padrões de exigência internacionais.
Que impactos já são visíveis? E que estratégias estão a ser adotadas?
Os agricultores são os primeiros a sentir os efeitos das alterações climáticas. As quebras de produtividade causadas por secas prolongadas, ondas de calor mais intensas, chuvas irregulares e fenómenos meteorológicos extremos tornam a atividade agrícola cada vez mais imprevisível e arriscada. Estes impactos não afetam apenas a rentabilidade das explorações, colocam também em causa a segurança alimentar e o abastecimento regular de alimentos.
Por isso, garantir uma gestão eficiente da água e investir em infraestruturas de regadio não é apenas uma questão de desenvolvimento económico — é uma resposta concreta à urgência climática e uma forma de proteger quem assegura a alimentação de todos. Os produtores portugueses estão a adaptar-se a este contexto com inovação e apostam, por exemplo, em sensores de monitorização, agricultura de precisão e novas variedades mais resilientes. A resiliência do setor depende cada vez mais da ciência e de uma gestão eficiente.
O setor está preparado para a escassez hídrica? Há investimentos relevantes?
O setor tem feito um esforço notável na poupança de água: hoje produzimos mais com menos. Mas chegámos a um limite em que a eficiência por si só já não chega. Precisamos urgentemente modernizar os perímetros de rega, construir charcas, reservatórios e barragens e implementar medidas concretas. Este é o travão mais sério ao crescimento sustentado do setor.
Em Portugal, a competitividade da produção agroalimentar está fortemente ligada às zonas com acesso a regadio. Apesar de o país dispor de uma superfície agrícola de 3,7 milhões de hectares, apenas cerca de 15% (aproximadamente 562 mil hectares) estão equipados com sistemas de rega.
É urgente reforçar a ambição nacional nesta área. A expansão do regadio é fundamental para tirar partido das excelentes condições climáticas que Portugal oferece. O nosso território tem um potencial notável para produzir azeite, vinho, carne, frutas, legumes, queijos e muito mais — mas é necessário fazer escolhas estratégicas.
A estratégia 'Água que Une' trouxe um conjunto de medidas (são quase 300), mas precisamos que seja posta em prática. É preciso que o Governo avance com a calendarização das obras para que este não seja mais um grande projeto que não sai do papel. Com um investimento previsto de cinco mil milhões de euros até 2030, o setor aguarda com expectativa a concretização de um plano claro de obras e investimentos que permita aumentar a capacidade produtiva e reforçar o contributo do agroalimentar para a economia e para as exportações.
Portugal não sofre de escassez de água — o verdadeiro desafio está na gestão e distribuição. É essencial criar uma rede nacional de água que una o país de norte a sul e de litoral a interior, garantindo eficiência e resiliência no acesso a este recurso vital.
“Precisamos urgentemente modernizar os perímetros de rega, construir charcas, reservatórios e barragens e implementar medidas concretas. Este é o travão mais sério ao crescimento sustentado do setor”
Os financiamentos verdes são relevantes para esta transição?
Os mecanismos de apoio devem ser simples, ágeis e acessíveis às empresas. Só assim poderemos acelerar a mudança.
Como caracteriza a competitividade atual do setor agroalimentar português?
Em 2024, as exportações portuguesas de frutas, legumes e flores atingiram o valor mais alto de sempre: 2,5 mil milhões de euros. De acordo com os dados do INE, representa um aumento de 7,5% em valor face a 2023 e mais do triplo do valor em comparação com 2010 (780 milhões de euros). Em volume, as exportações também registaram uma evolução positiva de 2,4%, para um total de 1.816.807 toneladas. A União Europeia é o principal destino das frutas, legumes e flores produzidos em Portugal, representando 81% das exportações em valor.
Os números mostram que Portugal está cada vez mais competitivo. Oferecemos produtos de excelência, com diferenciação, segurança e sabor — é isso que os compradores procuram. Mas precisamos de ambição e de um compromisso sólido que permita desbloquear o enorme potencial do setor agrícola. Com mais investimentos nas infraestruturas necessárias, Portugal pode consolidar-se como um dos principais exportadores de produtos agrícolas da Europa.
“Os números mostram que Portugal está cada vez mais competitivo. Oferecemos produtos de excelência, com diferenciação, segurança e sabor — é isso que os compradores procuram. Mas precisamos de ambição e de um compromisso sólido que permita desbloquear o enorme potencial do setor agrícola”
Que setores ou produtos têm maior potencial de crescimento? O que é necessário para internacionalizar com escala?
Os negócios devem ser efetuados do mercado para a produção. Ou seja, o mercado decidirá quais os produtos com maior potencial. Daí a enorme importância das ações que a Portugal Fresh promove que permitem conhecer melhor as tendências de mercado e identificar algumas das oportunidades que surgem.
Nos últimos anos, temos verificado um grande crescimento de setores como os pequenos frutos, liderados pela framboesa, laranja, frutos secos, tomate fresco, couves, kiwis, abacate e outros que mantêm a sua enorme importância como o tomate transformado, a pera rocha ou a maçã, entre outros. As plantas ornamentais também têm vindo a crescer e têm o seu espaço.
Para ganhar escala é fundamental apostar na organização da produção. Só através da cooperação entre agricultores e da concentração da oferta será possível aumentar a competitividade do setor. As organizações de produtores permitem otimizar recursos, reduzir custos e reforçar a capacidade de negociação dos produtores perante os mercados e os diferentes canais de distribuição. Numa agricultura cada vez mais exigente e global, trabalhar em conjunto é uma necessidade estratégica.
Acrescento ainda a necessidade de se adotar uma legislação eficaz para integrar os trabalhadores migrantes na agricultura. São uma peça fundamental e é preciso que sejam bem integrados e tenham condições dignas de habitabilidade. É urgente criar legislação para o alojamento coletivo de trabalhadores em meio urbano, como existe em Espanha e França há muitos anos. Recordo que, em Portugal, os migrantes já representam mais de 42% dos postos de trabalho do setor da agricultura e pescas. É preciso criar processos céleres e eficazes com os postos consulares, que dêem respostas atempadas às empresas.
Os apoios públicos devem estar alinhados com todos estes objetivos estratégicos.
Como a Portugal Fresh está a integrar a nova geração de produtores?
Temos uma nova geração mais qualificada, com visão global e sede de inovação. A Portugal Fresh trabalha com os seus associados de forma muito estreita e ajuda na promoção dos negócios em feiras internacionais, missões empresariais e partilha contínua de conhecimento.
O desafio da renovação geracional é gigantesco em toda a Europa, mas também é uma oportunidade. Ao apostar na tecnologia e inovação, o setor está a tornar-se mais atrativo para os jovens.
Que impactos tem sentido o setor com a instabilidade geopolítica?
Os conflitos e a instabilidade geopolítica têm tido um impacto significativo no setor agroalimentar. Os custos logísticos aumentaram, o acesso a certos mercados tornou-se mais difícil e o planeamento tornou-se mais complexo e exigente. Apesar disso, o setor tem demonstrado grande resiliência. Os riscos são reais e persistentes e a diversificação de mercados é algo a ter em conta para garantir a competitividade e a estabilidade das exportações.
No caso concreto dos EUA, trata-se de um mercado que valoriza bastante os produtos e não é fácil encontrar alternativas sem perda de valor. Para as exportações de frutas e legumes portugueses não é um mercado direto relevante, no entanto, indiretamente, o impacto das tarifas é muito preocupante. Produtos de outras geografias que normalmente exportavam para os Estados Unidos poderão ver na União Europeia um mercado alternativo afetando, assim, a valorização dos nossos produtos.
“Produtos de outras geografias que normalmente exportavam para os Estados Unidos poderão ver na União Europeia um mercado alternativo afetando, assim, a valorização dos nossos produtos”
Como aumentar a resiliência? É possível diversificar de forma estruturada?
Existem sempre alternativas, mas a valorização pode ser afetada. A contínua procura de abertura de mercados e alternativas é fundamental. Portugal tem de apostar numa estratégia nacional para a exportação e internacionalização do setor agroalimentar, focada na diversificação geográfica e na construção de relações comerciais mais estáveis. A ação tem de ser articulada entre setor e Governo.
O que falta para as empresas aproveitarem melhor os acordos comerciais da UE?
A União Europeia é líder mundial nas exportações do agroalimentar. E todos os acordos comerciais têm sido amplamente favoráveis ao setor. Esperamos com grande expectativa a concretização do acordo com o Mercosul, em que a UE teve muito cuidado com as áreas mais sensíveis. Será uma oportunidade de aposta, forte, naquele bloco geográfico, com a grande vantagem da língua e da proximidade cultural. As empresas portuguesas do setor terão uma excelente oportunidade para reforçar as suas exportações para fora da UE. Este é um acordo que deve ser altamente aproveitado e a Portugal Fresh já está a reforçar a presença em feiras e a planear a organização de ações de prospeção e missões empresariais naquela geografia, com o objetivo de maximizar esta oportunidade.
Qual a prioridade estratégica para a fileira agroalimentar até 2030?
A prioridade é clara: garantir água para produzir. Sem uma estratégia robusta de gestão e armazenamento hídrico, não será possível garantir segurança alimentar, estabilidade produtiva e competitividade externa. É preciso mais ambição! Água é soberania.
“O setor agroalimentar é, indiscutivelmente, estratégico para Portugal. Não apenas pela sua relevância económica, mas também pelo impacto social e ambiental que representa”
Que mensagem deixaria aos líderes empresariais do setor?
O setor agroalimentar é, indiscutivelmente, estratégico para Portugal. Não apenas pela sua relevância económica, mas também pelo impacto social e ambiental que representa. Para além de ser um motor de criação de valor e de emprego, a agricultura desempenha um papel essencial na coesão territorial, ajudando a manter vivas as regiões do interior e a travar o avanço da desertificação. É um setor que sustenta comunidades, preserva paisagens e garante o equilíbrio do território.
Às empresas, apelo a que continuem a apostar na qualidade, na inovação, na ambição e na promoção internacional. O setor agrícola já provou que sabe crescer com consistência. Agora, é hora de reclamar mais visão estratégica para o país. Portugal pode e deve ser uma potência agroalimentar na Europa.
Gonçalo Santos Andrade
Gonçalo Santos Andrade é presidente da Portugal Fresh, Associação para a Promoção das Frutas, Legumes e Flores de Portugal, tendo acompanhado o crescimento das exportações do setor, que duplicaram na última década.
Engenheiro agrícola formado pela Escola Superior Agrária de Castelo Branco, completou o Programa de Direção de Empresas e o Programa GAIN, Direção de Empresas Agrícolas e Agroindustriais na AESE Business School, do qual é o atual diretor. É também diplomado em Market Driving Strategies pela London Business School.
Desde 2004 que participa, anualmente, nos principais eventos de mercados internacionais do setor das frutas e legumes, e organizou e participou em missões empresariais, ações de prospeção de mercado e feiras internacionais em mais de 17 países e quatro continentes.
Com uma vasta experiência na gestão de empresas hortofrutícolas, é ainda Vice-Presidente da direção executiva da CAP (Confederação dos Agricultores de Portugal), Chairman do ICOP (International Conference of Producers Organization), sócio da Casa Prudêncio, Sociedade Agropecuária, Lda., e Administrador Executivo da Lusomorango, a maior organização de produtores de frutas e legumes em Portugal em volume de negócios.
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iAlimentar - Informação profissional para a indústria alimentar portuguesa