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Carne cultivada: Avanços e desafios regulamentares a nível europeu

Francesco Montanari, Docente e investigador, Wageningen University & Research, Países Baixos e Nova School of Law, Lisboa, Portugal │Diretor Arcadia International │ Advogado especializado em direito alimentar, Ordem dos Advogados de Lisboa e Bolonha05/03/2025
Neste artigo, pretende-se fazer o ponto da situação dos avanços regulamentares no mercado europeu, analisando os primeiros dois pedidos de autorização relativos à carne cultivada, juntamente a experiências que estão a ser testadas nalguns mercados nacionais com vista a agilizar o seu processo de comercialização.
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A carne cultivada constitui uma das inovações no setor agroalimentar mais disruptivas deste século. Do ponto de vista técnico, este método de produção baseia-se no crescimento de células animais em bio-reatores, sendo as células extraídas por meio de uma biopsia que não causa dor ao animal.

Nos bio-reatores, as células são estimuladas com o objetivo de replicar os tecidos musculares ou a gordura que tipicamente caraterizam os alimentos de origem animal. Os produtos obtidos através desta técnica são geralmente chamados como ‘carne cultivada’, ‘carne celular’ ou, embora hoje menos comumente, ‘carne de laboratório’ e ‘carne sintética’.

Carne cultivada: uma questão de segurança alimentar ou uma questão política?

Até hoje, o desenvolvimento e aplicação da carne cultivada tem encontrado vários obstáculos de natureza técnico-económica, regulamentar e política. De modo geral, a escalabilidade industrial desta inovação representa um desafio, envolvendo, por um lado, custos elevados e requerendo, por outro lado, a adoção de soluções técnicas que garantam a sustentabilidade ambiental dos alimentos assim produzidos no longo prazo.

Além disso, no caso específico da União Europeia (UE), a necessidade de obter uma autorização prévia ao abrigo do Regulamento (UE) 2015/2283 sobre os novos alimentos [1], onde esta inovação se enquadra, constitui outro desafio, uma vez que se trata de um procedimento regulatório moroso e complexo para as empresas que se aventuram por este caminho.

Acresce a isso a crescente resistência à chegada da carne cultivada no mercado, manifestada pelos governos de vários países europeus, atendendo ao impacto que esta inovação poderá vir a ter na atividade agropecuária tradicional. Efetivamente, nos últimos anos, esta resistência tem-se traduzido na adoção de legislação nacional – como no caso da Itália e da Hungria - [2] que proíbe a produção e a comercialização dos produtos resultantes da agricultura celular, bem como o financiamento da investigação científica nesta área.

Em paralelo, no início de 2024, uma coligação de 13 países europeus - liderada por Itália, França, Áustria e, cabe realçar, entre os quais não consta Portugal - apresentou um documento conjunto no Conselho da UE [3] expressando preocupação sobre:

  • A segurança da carne cultivada para consumo humano;
  • A adequação do quadro legal europeu existente para a avaliação da sua segurança;
  • O impacto socioeconómico desta inovação para o setor agrícola e, mais em geral, para as comunidades rurais.

Mas será que estas preocupações são realmente fundamentadas do ponto de vista jurídico?

Em primeiro lugar, em relação à segurança da carne cultivada como alimento, esta não deveria constituir uma preocupação dos legisladores nacionais pois a sua avaliação é uma competência exclusiva da UE. Em especial, conforme o Regulamento (CE) No 178/2002,[4] que estabelece a Lei Alimentar Geral a nível europeu, a avaliação dos riscos para a saúde que os novos alimentos podem apresentar cabe, em primeira instância, à Autoridade Europeia da Segurança Alimentar (EFSA). Na sequência, e com base nesta avaliação, é a Comissão Europeia que, enquanto gestor do risco e juntamente com os países da UE, autoriza ou não autoriza os novos alimentos.

Em segundo lugar, no que diz respeito à adequação do quadro legislativo europeu atualmente em vigor para a avaliação da segurança da carne cultivada, esse quadro poderá, porventura, não fornecer todas as respostas que se pretendem sobre a autorização desta inovação. Efetivamente, a legislação europeia sobre os novos alimentos é uma legislação de cariz geral que, como tal, abrange um leque virtualmente infinito de inovações alimentares.

No entanto, importa reconhecer que os decisores europeus se esforçaram bastante para irem ao encontro das exigências de inovações alimentares com potencial disruptor, tal como a carne cultivada. Para além da organização de eventos e seminários informativos dirigidos a empresas potenciais requerentes de autorizações de novos alimentos, a EFSA atualizou as linhas diretrizes para a submissão de dossiês de novos alimentos no outono de 2024. A atualização dessas linhas diretrizes contém elementos e considerações diretamente relevantes para a carne cultivada e outras fontes de proteínas alternativas (designadamente, os alimentos resultantes da fermentação microbiana), sendo aplicáveis desde 1 de fevereiro de 2025.[5]

Francesco Montanari é diretor da Arcadia International e advogado especializado em direito alimentar
Francesco Montanari é diretor da Arcadia International e advogado especializado em direito alimentar.

Por último, quanto ao impacto socioeconómico da carne cultivada no setor agropecuário europeu, cabe realçar que, de modo geral, a decisão de autorizar um novo alimento depende do parecer científico favorável da EFSA na sua qualidade de avaliador do risco. No entanto, conforme previsto pela Lei Geral Alimentar, para além da avaliação do risco para a saúde publica, o gestor do risco - ou seja, a Comissão Europeia juntamente aos 27 países da UE – pode sempre ter em conta outros ‘fatores legítimos’ na tomada de decisões[6].

Estes fatores podem incluir considerações ou exigências de tipo ambiental, económico e social, entre outros. Neste sentido, atendendo à resistência política referida acima para a introdução da carne cultivada no mercado comunitário, nos futuros procedimentos de autorização a nível europeu que lhe dizem respeito não se podem excluir a priori decisões políticas que descurem total ou parcialmente a ciência.

Face a este contexto político e regulamentar, não surpreende que a UE esteja uns passos atrás na autorização desta inovação comparada a outras jurisdições, como Singapura ou os Estados Unidos da América. Portanto, face a estes obstáculos, é legitimo questionar-se sobre se e quando a carne cultivada vai efetivamente chegar nos nossos pratos.

Gourmey e Mosa Meat: primeiros pedidos de autorização

Apesar dos obstáculos regulamentares e políticos referidos acima, ao longo do último semestre registaram-se avanços significativos do ponto de vista regulamentar em relação à aprovação da carne cultivada no mercado europeu.

Assim, em julho de 2024, a start-up francesa Gourmey apresentou o primeiro pedido de autorização de carne cultivada como novo alimento. Trata-se, em concreto, de um conjunto de ingredientes e alimentos resultantes da reprodução de células de pato-real (Anas platyrhynchos), que inclui derivados da carne, óleos, gorduras, preparações alimentares e cremes para barrar, entre os quais se destaca o foie gras [7].

No entanto, o pedido de autorização da start-up francesa não é apenas relevante por ser o primeiro em absoluto que visa a carne cultivada a nível europeu. Tem também importância pelo facto de a empresa requerente ter apresentado o mesmo pedido de autorização simultaneamente em outras jurisdições, incluindo Singapura, Israel, Estados Unidos de América e o Reino Unido.

Além disso, não deixa de haver uma certa ironia no facto deste pedido dizer respeito ao foie gras, ou seja, um alimento que, produzido primariamente em França e Hungria[8], faz parte da tradição e do património gastronómicos europeus, sendo até protegido ao abrigo da legislação europeia sobre as indicações geográficas[9].

Importa, por último, salientar que Gourmey, aquando da apresentação do pedido de autorização aqui em causa, requereu a aplicação das disposições da legislação europeia sobre os novos alimentos que garantem a proteção de dados usados para a elaboração dos dossiês científicos (art. 26.º Regulamento (UE) 2015/2283). Caso a Comissão Europeia conceda esta proteção no fim do procedimento de autorização, isso implica que a start-up francesa poderá aproveitar comercialmente, e em exclusividade, da inovação que desenvolveu até um período máximo de 5 anos após a data da sua aprovação.

Por outro lado, logo no início deste ano, a empresa holandesa Mosa Meat submeteu um segundo pedido de autorização da carne cultivada como novo alimento. O pedido diz respeito à gordura de carne bovina, entre outros, para uso em produtos plant-based com o objetivo de conferir as características organoléticas típicas da carne.

Segundo a empresa holandesa, para a elaboração deste dossiê científico tiveram de ser mobilizados muitos recursos, incluindo 10 colaboradores a tempo inteiro e a realização de ensaios em laboratórios acreditados em quase 500 amostras, resultando num dossiê científico com mais de 1000 páginas[10]. Mesmo sem mencionar os custos totais que foram suportados para tamanho esforço, isso dá uma ideia da complexidade que a preparação de um dossiê para a autorização de um novo alimento apresenta.

Daqui pela frente, os dois pedidos de autorização irão enfrentar um procedimento regulatório a nível europeu a cabo da EFSA no que toca à avaliação do risco e que, assumindo um desfecho positivo, poderá durar, em média, até três anos. 

Sandbox regulatórios: uma nova ferramenta para acelerar a autorização de novos alimentos?

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Face a um contexto regulamentar para os novos alimentos e, em especial, para a carne cultivada que se afigura como bastante complexo, as autoridades de alguns países europeus tentaram encontrar soluções alternativas e innovation-friendly. É o caso da Holanda, onde as autoridades locais permitiram a organização de tasting sessions de produtos à base de carne cultivada, mesmo na ausência de autorizações formais a nível europeu[11].

Isto foi possível recorrendo a um mecanismo comumente conhecido como sandbox regulatório. Trata-se, em concreto, de um ambiente controlado onde, sob a supervisão de entidades públicas, as empresas podem testar as suas inovações diretamente com os consumidores. Esta é uma abordagem já usada em outros setores que produzem bens ou fornecem serviços de largo consumo, incluindo o setor financeiro e bancário e o setor das telecomunicações.

No que diz respeito ao setor agroalimentar, a aplicação de sandbox regulatórios encontra-se ainda numa fase inicial e, por assim dizer, de experimentação. Neste setor, os sandbox regulatórios podem servir para aprimorar produtos em fase de desenvolvimento e/ou para recolher dados científicos com vista a submissão de um pedido de autorização (tal como no caso dos novos alimentos).

No entanto, contrariamente ao que acontece em outras jurisdições (por exemplo, em Singapura e no Reino Unido), atualmente a legislação europeia não contempla a possibilidade de testar as inovações alimentares em sandbox regulatórios. O silêncio da legislação europeia a este respeito levanta, portanto, dúvidas sobre a legalidade dos sandbox regulatórios instituídos por alguns países europeus. Por outro lado, estas iniciativas nacionais contribuem para uma fragmentação do mercado europeu, que é manifestamente contrária aos objetivos perseguidos pela harmonização comunitária. 

Posto isso e concluindo, seria oportuno começarmos a debater, a nível europeu, se o uso desta ferramenta poderia representar uma oportunidade para acelerar a chegada ao mercado de novos produtos e ingredientes que respondam tanto às expetativas de consumidores cada vez mais exigentes quanto à necessidade de tornar os sistemas alimentares atuais mais sustentáveis.

Isso sem obviamente prescindir de todas as garantias que seria necessário equacionar para este efeito (por exemplo, em termos de rastreabilidade e rotulagem) para assegurar uma efetiva proteção dos consumidores que participem nestas experiências.

1 Regulamento (UE) 2283/2015 do Parlamento Europeu e do Conselho de 25 de novembro de 2015 relativo a novos alimentos, JO L 327 de 11.12.2015, p.1.

2 Por exemplo, no caso da Itália, v. Legge 1º dicembre 2023, n. 172 Disposizioni in materia di divieto di produzione e di immissione sul mercato di alimenti e mangimi costituiti, isolati o prodotti a partire da colture cellulari o di tessuti derivanti da animali vertebrati nonché' di divieto della denominazione di carne per prodotti trasformati contenenti proteine vegetali, GU Serie Generale n. º 281 dell’1-12-2023.

3 General Secretariat of the Council of the European Union, Note 5469/24 – ‘The CAP’s role on safeguarding high-quality and primary farm-based food Production’, Information from the Austrian, French and Italian delegations, supported by the Czech, Cypriot, Greek, Hungarian, Luxembourg, Lithuanian, Maltese, Romanian and Slovak delegations, 18 January 2024.

4 Regulamento (CE) n.º 178/2002 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de janeiro de 2002, que determina os princípios e normas gerais da legislação alimentar, cria a Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos e estabelece procedimentos em matéria de segurança dos géneros alimentícios, JO L 31 de 1.2.2002, p. 1.

5 EFSA, Guidance on the scientific requirements for an application for authorisation of a novel food in the context of Regulation (EU) 2015/2283, 30 September 2024, https://efsa.onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.2903/j.efsa.2024.8961.

6 Considerando 19 e art. 6.º, n.º 3 do Regulamento (CE) n.º 178/2002, citado acima.

7 Application for the authorisation of Duck cells from cell culture as a novel food under Regulation (EU) 2015/2283 - Public Summary, July 2024, https://food.ec.europa.eu/document/download/45e22e48-b72b-4cbf-9ab6-5aac3debdbcb_en?filename=novel-food_sum_ongoing-not_2024-22222.pdf.

8 Beaver B., Golab G., Livestock welfare issue, Chapter 11, in The Veterinarian' s Guide to Animal Welfare, 2023, p. 285-338.

Como, por exemplo, no caso da indicação geográfica protegida (IGP) Canard à foie gras du Sud-Ouest conforme o Regulamento (CE) n.º 1338/2000 da Comissão, de 26 de Junho de 2000, que completa o anexo do Regulamento (CE) n.º 2400/96 relativo à inscrição de determinadas denominações no registo das denominações de origem protegidas e das indicações geográficas protegidas previsto no Regulamento (CEE) n.º 2181/92 do Conselho relativo à proteção das indicações geográficas e denominações de origem dos produtos agrícolas e dos géneros alimentícios, JO L 154 de 27/06/2000 p. 5.

10 Mosa Meat, Submitting Our First EU Market Authorisation Request, 22 January 2025, https://mosameat.com/blog/submitting-our-first-eu-market-authorisation-request.

11 Code of Practice for Safely Conducting Tastings of Cultivated Foods Prior to EU Approval, https://open.overheid.nl/documenten/39127f7e-b18b-4ddf-95a7-0be5ff660aed/file.

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