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Informação profissional para a indústria alimentar portuguesa

A redescoberta das bolotas para alimentação humana

Ana Oliveira, Inês Ferreira, Arcadia International31/01/2025
Devido à crescente necessidade de encontrar alternativas alimentares sustentáveis e com valor nutricional elevado, tem havido um crescente interesse por este fruto dado as suas características nutricionais e bioquímicas. Neste contexto, estão a ser desenvolvidos diversos projetos que visam a sua valorização.
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As bolotas são os frutos produzidos pelas árvores do género Quercus, pertencentes à família da Fagaceae que integra mais de 450 espécies distribuídas pela América do Norte, Ásia, Norte de África e Europa (Vinha et al. 2016; Pacheco, 2015). Em Portugal, as espécies de Quercus incluem o sobreiro (Q. suber), a azinheira (Q. rotundifolia) e os carvalhos (Q. robur, Q.pyrenaica, Q.faginea, Q. coccifera, Q.rubra, Q. canariensis, etc.), que cobrem 36% da área florestal de Portugal Continental, sendo que a produção média anual de bolota é estimada em 400 mil toneladas (ICNF, 2019; Monteiro et al. 2023).

Desde tempos remotos, as bolotas desempenham um papel muito importante na alimentação humana, sendo frequentemente associadas a períodos de fome e pobreza (Garcia et al. 2017). Contudo, ao longo do tempo, foram perdendo a sua relevância no consumo humano e atualmente são muito utilizadas na alimentação animal, em particular na engorda do porco ibérico (Inácio et al. 2024).

Devido à crescente necessidade de encontrar alternativas alimentares sustentáveis e com valor nutricional elevado tem havido um crescente interesse por este fruto dado as suas características nutricionais e bioquímicas. Neste contexto, estão a ser desenvolvidos diversos projetos que visam a sua valorização. Um exemplo em Portugal é o projeto OakFood – Valorização Integrada da Bolota como Matéria-Prima Portuguesa para Produtos Alimentares Diferenciadores.

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Caracterização da bolota

A bolota é um fruto edível, de casca rija, que exibe uma grande variabilidade não só entre as diferentes espécies, mas dentro da própria espécie devido a fatores edafo-climáticos e filogenéticos (Pacheco, 2015; Vinha et al. 2016). Em termos morfológicos é uma noz de uma semente única, caracterizada pela presença de um embrião aclorófilo, mas sem endosperma (Vinha et al. 2016).

Relativamente à sua composição nutricional e bioquímica, e independentemente da sua variabilidade, genericamente é reconhecido que as bolotas são uma boa fonte de hidratos de carbono (em especial amido) (Correia, 2013), lípidos (em especial ácidos gordos insaturados) (Silva, 2016), fibra, carotenoides, compostos fenólicos, flavonoides, vitamina E e minerais (Cu, Fe, Zn, K, P, entre outros) (Custódio, 2015).

Atendendo ao seu perfil nutricional, os produtos à base de bolotas podem ter determinadas alegações nutricionais e de saúde, desde que cumpram com o estabelecido no Regulamento (CE) n.º 1924/2006. Além disso, são isentas de glúten, pelo que são um ingrediente interessante para produtos destinados a pessoas com intolerância ao glúten ou com doença celíaca.

Consumo histórico em Portugal

Desde os tempos pré-históricos que há registo de consumo humano de bolotas em Portugal, sendo vários os exemplos que podem ser encontrados desde o norte ao sul do país (Mattoso, 1993; Alarcão-e-Silva, 2001; Reis, 2018). As bolotas também fizeram parte da alimentação humana durante o tempo dos romanos, na idade média até ao segundo quartil do século XX, com registos em diversas fontes (Amorim, 1987; Fonseca & Themudo-Barata, 2018; Fonseca, 2020). A partir do terceiro quartil do século XX, o seu uso como alimento tornou-se residual, estando associado a épocas de grandes dificuldades e pobreza (Fonseca, 2020; Monteiro et al. 2023).

As bolotas eram consumidas de várias formas, desde cruas, assadas, cozidas e secas (que permitia prolongar o tempo de conservação). Também era extraído o óleo, que era utilizado na alimentação. As bolotas secas podiam ser torradas e utilizadas para fazer uma bebida semelhante ao café, ou moída em farinha, podendo depois ser utilizada em muitas receitas de doces ou de salgados, como pão, biscoitos, bolos, migas, entre outros (Vinha et al. 2016; Monteiro et al. 2023).

Nos últimos tempos, tem-se verificado um crescente interesse pelo seu potencial como recurso alimentar sustentável, uma vez que as florestas de Quercus promovem a conservação do solo e biodiversidade, além dos benefícios nutricionais destes frutos (Inácio et al. 2024; Fonseca, 2020). Além disso, atualmente, tem surgido uma ampla variedade de produtos à base de bolota, incluindo bolachas, biscoitos, pão, iogurtes, patês, bebidas vegetais, licor, entre outros. Contudo, ainda representa apenas um nicho de mercado (Fonseca, 2020; Monteiro et al. 2023).

Potencial uso em alimentação humana – aspetos regulamentares

Das centenas de espécies de bolotas referidas em publicações científicas, apenas duas espécies estão listadas no Catálogo de Novos Alimentos da União Europeia (UE): a bolota da azinheira (Quercus rotundifolia Lam) que pode ser utilizada na alimentação e a bolota do carvalho (Quercus robur L), que apenas pode ser utilizada em suplementos alimentares.

Na UE, de acordo com artigo 2.º, alínea IV), do Regulamento (UE) n.º 2015/2283 relativo aos novos alimentos, 'novo alimento' significa qualquer alimento que não tenha sido utilizado em quantidade significativa para consumo humano na União antes 15 de Maio de 1997, incluindo, entre outros: “Alimentos que consistam em plantas ou partes destas ou que tenham sido isolados ou produzidos a partir das mesmas, exceto se esses alimentos tiverem um historial de utilização alimentar segura na União e consistirem numa planta ou numa variedade da mesma espécie ou tiverem sido isolados ou produzidos a partir da mesma, devendo essas plantas ser obtidas por:

• Práticas de propagação tradicionais que tenham sido utilizadas para a produção de alimentos na União antes de 15 de maio de 1997

• Práticas de propagação não tradicionais que não tenham sido utilizadas para a produção de alimentos na União antes de 15 de maio de 1997 caso não deem origem a alterações significativas da composição ou da estrutura do alimento que afetem o seu valor nutritivo, o seu metabolismo ou o seu teor de substâncias indesejáveis.”

Em termos práticos, isto significa que, se uma espécie de bolota não tiver sido consumida de uma forma significativa pelos seres humanos na UE antes de 15 de maio de 1997, é classificada como um novo alimento e deve ser submetida a um longo processo de autorização ao nível da UE antes de poder ser utilizada.

Provar a utilização significativa de uma determina espécie de bolota para consumo humano na UE antes de 1997 é um desafio, uma vez que os dados disponíveis são antigos e, muitas vezes, não estão devidamente preservados. Além disso, embora existam evidências de consumo geral de bolotas, muitas vezas essas evidências não estão diretamente relacionadas ao consumo de uma espécie específica.

Contudo, se existirem indícios de consumo, mas o estatuto jurídico da bolota ainda for incerto, os operadores do setor alimentar podem solicitar uma consulta para determinar se o alimento se qualifica como novo, conforme o procedimento estabelecido pelo artigo 4.º do Regulamento dos Novos Alimentos.

Este procedimento é mais simples e rápido, permitindo que os operadores consultem as autoridades competentes do Estado-Membro da UE onde pretendem introduzir o produto no mercado pela primeira vez. Para isso, o operador deve fornecer informações detalhadas, como um dossiê técnico que inclua, entre outros, a descrição do alimento, o processo de produção e provas do seu histórico de consumo. Posteriormente, a autoridade competente pode consultar outros Estados-Membros e a Comissão para tomar uma decisão sobre se o alimento se qualifica como um novo alimento ou não.

Por outro lado, se a espécie for efetivamente classificada como um novo alimento sem histórico de consumo humano significativo, será necessário seguir o procedimento descrito no artigo 10.º do mesmo regulamento, que é mais longo e complexo. Nesse caso, o operador deverá apresentar um dossiê técnico completo, incluindo, entre outros, informações sobre a produção, a composição detalhada do alimento e evidências científicas que comprovem que o alimento não representa risco para a saúde humana.

Existe ainda um procedimento estabelecido pelo artigo 14.º do mesmo regulamento para espécies que tenham histórico de consumo em países terceiros, permitindo uma via de aprovação menos complexa nesses casos, mas exigindo também ao operador a apresentação de um dossiê técnico sobre o alimento.

Concluindo, as bolotas têm um potencial para ter uma posição relevante no mercado nacional e internacional, como um ingrediente nutritivo, sustentável e versátil. No entanto, o seu sucesso dependerá de uma análise criteriosa e detalhada da regulamentação alimentar da UE. Para tal, será necessário a obtenção de dados de consumo humano, opiniões científicas, monografias, dados de organizações nacionais e internacionais, receitas, livros de receitas, entre outros documentos que ajudem a determinar o procedimento regulamentar apropriado.

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Referências bibliográficas

Alarcão-e-Silva, Maria (2001). Catarina Dias de Aguiar – empresária de cortiça, aposentadorias e especiarias em tempos de descobrimentos (sécs. XV-XVI)”. in Faces de Eva – estudos sobre a mulher. Pp 107-130. n.6. Edições Colibri/Universidade Nova de Lisboa.

Barata F (2018). Utilização de alimentos de substituição nos montados do Alentejo no segundo e terceiro quartis do século XX (Use of substitute foods in the “Montados” of Alentejo during the second and third quartersof the twentieth century). História & Economia - Revista Interdisciplinar, 21, 67.

Correia, P. R., Nunes, M. C., & Beirão-da-Costa, M. L. (2013). The effect of starch isolation method on physical and functional properties of Portuguese nut starches: II. Q. rotundifolia Lam. and Q. suber Lam. acorns starches. Food Hydrocolloids, 30(1), 448–454.

Custódio, L., Patarra, J., Alberício, F., Neng, R., Nogueira, J. M. F., & Romano, A. (2015). Phenolic composition, antioxidant potential, and in vitro inhibitory activity of leaves and acorns of Quercus suber on key enzymes relevant for hyperglycemia and Alzheimer’s disease. Industrial Crops and Products, 64(February), 45–51.

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Inácio, L. G., Bernardino, R., Bernardino, S., & Afonso, C. (2024). Acorns: From an ancient food to a modern sustainable resource. Sustainability, 16(22), 9613. https://doi.org/10.3390/su16229613

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Mattoso, José (Direcção). 1993. História de Portugal – Antes de Portugal. Vol.1. Editorial Estampa.

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Pacheco AR. Análise nutricional, físico-química e atividade antioxidante de frutos de Quercus sp. Visando a sua valorização. Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto.2015. Disponível em: https://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/80822/2/36830.pdf.

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Reis, A.S.G.P. (2018) - A Distribuição dos Recursos Vegetais na Idade do Bronze no Noroeste de Portugal: uma perspetiva espacial - Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Arqueologia, Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

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Vinha, A.F.; Barreira, J.C.M.; Costa, A.S.G.; Oliveira, M.B.P.P. A New Age for Quercus spp. Fruits: Review on Nutritional and Phytochemical Composition and Related Biological Activities of Acorns. Compr. Rev. Food Sci. Food Saf. 2016, 15, 947–981.

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