Quando fala das suas cervejas de fermentação espontânea do tipo 'lambic' e 'gueuze', apreciadas em todo o mundo e comercializadas sob a marca Cantillon, Jean-Pierre Van Roy apela à paciência, a deixar que o mosto amadureça e ao respeito por umas técnicas centenárias que descreve com precisão e paixão.
À entrada da sua fábrica na comuna de Anderlecht, em Bruxelas, um negócio familiar fundado em 1900 por Paul Cantillon com um 'savoir-faire' transmitido desde há quatro gerações, uma frase resume essa filosofia do mestre: ”O tempo não respeita aquilo que se faz sem ele”.
"É uma cerveja de fermentação espontânea, ou seja, não adicionamos levedura para provocar a fermentação do mosto. O mosto é arrefecido ao ar livre, num local abrigado, numa grande cuba de cobre vermelho, e durante esse processo de arrefecimento à noite, pouco a pouco, adquire leveduras selvagens, que são as responsáveis pela fermentação natural, o processo que permitia fazer todas as cervejas antes de Pasteur", explica Van Roy.
Jean-Pierre Van Roy comercializa a sua cerveja sob a marca Cantillon.
O industrial, que não se considera nem artesão nem cientista e que se esquiva ao apelido de mágico, tem uns olhos azuis pequenos e brilhantes que se movem com vivacidade enquanto ele se explica entre as cubas e barris da sua fábrica-museu-bar-loja-templo por onde passam 35 000 visitantes por ano.
Van Roy veste calças de ganga, uma t-shirt e um blusão de pele que conferem um certo ar roqueiro a um octogenário que, entre piadas, disfarça uma idade que não aparenta: “Tenho 20 anos desde há 61. Faça as contas”, diz ele.
A Cantillon, que utiliza aparelhos do início do século XX, produz apenas 2500 hectolitros por ano, uma ninharia em comparação com os milhões de hectolitros vendidos pelas grandes marcas industriais da Bélgica. E essa exclusividade faz parte do sucesso de uma cerveja difícil de conseguir.
“A produção é limitada, em primeiro lugar, porque só fabricamos no inverno e, em segundo lugar, porque necessitamos de uma superfície enorme para a armazenar, porque não será vendida até dois anos e meio após o fabrico”, explica.
Restringir o fabrico a cinco meses, de novembro a março, é necessário para que a temperatura noturna oscile entre -5 e +8 °C e o caldo do cereal fervido desça de 100 para 20 °C enquanto as leveduras silvestres se apoderam da mistura.
“Apenas o teto separa o mosto das estrelas. Depois, a cerveja «lambic» matura em barricas de carvalho ou castanheiro durante um, dois ou três anos. E a 'gueuze' é uma mistura de cervejas 'lambic' que volta a fermentar na garrafa. Diria que a 'lambic' é para a 'gueuze' o que o vinho branco é para o champanhe”, resume.
“Um dia encontrei uma rapariga bonita, Claude, e não sabia que era filha de um cervejeiro. Foi assim que conheci Marcel Cantillon, que era fabricante de 'lambic'. A fábrica não estava bem nos anos sessenta e a família não tinha interesse em recuperá-la, pelo que estava a ponto de desaparecer. O meu sogro disse-me: "Jean-Pierre, ou tu tomas conta disto ou fechamos". Estávamos em 1969. Pensei nisso com a minha mulher uma noite, decidi recuperar a fábrica e ressuscitei-a”, resume.
O início foi difícil para Van Roy, que tinha estudado para ser professor e não conhecia o ofício da cerveja: estava à beira da ruína, pagava créditos com juros a 12% e via como os outros fabricantes não respeitavam as técnicas tradicionais, descritas por lei.
Tanto que na década de oitenta denunciou oito grandes cervejeiras por fraude, mas o processo foi arquivado e a lei foi alterada em 1993 para não apanhar em falta a concorrência, pois na fábrica de Van Roy trabalhavam três pessoas e nas outras centenas. Foi aí que decidiu dar prioridade à marca Cantillon em relação à singularidade da cerveja «lambic».
As suas instalações estão localizadas em Anderlecht, em Bruxelas (Bélgica).
E o sucesso acabou por bater à sua porta. Primeiro ganhou fama na Bélgica, quando aquelas cervejas arcaicas e ácidas, populares no início do século XX, voltaram a estar na moda, incluindo as variedades frutadas como a “kriek” de cereja. E nos anos oitenta, surgiram os primeiros importadores japoneses, marcando o início de uma expansão internacional que hoje se estende a trinta países.
“Antes eu tinha de me ajoelhar para vender uma cerveja e agora ajoelham-se para comprá-la”, brinca Van Roy, que se gaba de nunca ter entrado em um avião porque os seus clientes vêm à fábrica.
O segundo pilar da sua fama internacional passa pelos Estados Unidos, onde Van Roy é uma estrela. Foi dado a conhecer por um guru do whisky e da cerveja chamada Michael Jackson num livro publicado em 1977. E depois, pelo secretário de Estado George P. Shultz, que viajou para Bruxelas em dezembro de 1986 e visitou primeiro o rei Alberto II, em seguida, a fábrica da Cantillon e depois o primeiro-ministro Wilfried Martens, com quem passou a tarde a falar das cervejas que tinha provado.
Hoje, a Cantillon é um negócio próspero graças às vendas de cerveja e também ao concorrido museu, que fundou em 1978, é gerido pela sua filha Julie e está em pleno processo de ampliação. Jean-Pierre continua ativo, mas quem se ocupa da administração é a sua filha Magali, e da produção é o seu filho Jean, pelo que a continuidade da Cantillon está garantida.
Os tempos mudam, o catálogo de cervejas vai evoluindo e o mestre respeita as decisões das novas gerações, embora nem todas o entusiasmem. “Nós idosos temos a obrigação de respeitar as decisões dos jovens que não tomaríamos. Mas também não devem ir demasiado longe, porque ainda sou muito reativo”, avisa sorridente, enquanto degusta uma 'gueuze'.
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