Informação profissional para a indústria alimentar portuguesa

Que papel tem a indústria alimentar no desenvolvimento da obesidade?

Gil Faria, cirurgião especialista em Cirurgia da Obesidade e Metabolismo; coordenador dos Centros de Tratamento da Obesidade do Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos e do Grupo Trofa Saúde; professor da FMUP; investigador clínico na área da Cirurgia Metabólica e Obesidade

10/11/2023
A indústria alimentar tem de estar consciente das associações entre os alimentos ultraprocessados e a obesidade
O apetite humano por proteínas, a palatabilidade, a conveniência e disponibilidade das comidas ultraprocessadas e o poderoso marketing utilizado pela indústria alimentar são alguns dos aspetos mais determinantes no que diz respeito ao risco de obesidade que assistimos no mundo ocidental.

Durante o século XX, os padrões de alimentação nos países desenvolvidos alteraram-se de forma substancial, como resultado do crescimento económico exponencial, da globalização e de grandes alterações no estilo de vida das populações. Importantes avanços tecnológicos na indústria alimentar, uma cadeia de distribuição global e um poderosíssimo marketing para promover produtos alimentares levaram ao aumento do consumo de comida pronta a comer e ultraprocessada.

Gil Faria, cirurgião especialista em Cirurgia da Obesidade e Metabolismo

Gil Faria, cirurgião especialista em Cirurgia da Obesidade e Metabolismo.

A dieta tradicional, baseada em alimentos minimamente processados e cozinhados em casa, tem sido cada vez mais substituída por alternativas processadas industrialmente e produtos prontos a comer. Nos EUA, o consumo de comida ultraprocessada é responsável por mais de 60% de todas as calorias ingeridas e em países como a Alemanha ou a Holanda, esse valor aproxima-se dos 80%.

Simultaneamente, tem havido um aumento global da obesidade, o que leva diversos estudiosos a propor a existência de uma relação direta entre a alimentação ultraprocessada e o desenvolvimento desta doença. Esta associação tem sido encontrada em alguns países, embora ainda esteja por comprovar o seu nexo de causalidade. A hipótese mais comum é a de que o aumento do consumo de comida ultraprocessada compromete a qualidade nutricional da dieta e aumenta o risco de obesidade. Alguns estudos concluíram que quanto maior a compra e/ou o consumo de alimentos ultraprocessados, maior o risco de desenvolvimento da obesidade.

A dieta ultraprocessada, habitualmente, inclui ingredientes utilizados no processamento da comida, tais como óleos hidrogenados, xarope de milho, emulsificantes e edulcorantes. São, normalmente, mais económicas e práticas, mas têm quase sempre uma maior quantidade de gordura, hidratos de carbono, sal e calorias. As comidas ultraprocessadas extraem alguns componentes dos alimentos 'integrais' e alteram-nos com processos químicos ou aditivos, de forma a obter o produto final. Caracteristicamente são produzidas para serem baratas, saborosas e convenientes. Alguns exemplos destes alimentos são refrigerantes, doces, snacks ou pastelaria embalada, produtos prontos a aquecer ou derivados de carne processada.

Um estudo americano, promovido pelo NIH (National Institute of Health), comparou dois grupos de pessoas saudáveis uns a comer dieta ultraprocessada e outros minimamente processada. As refeições oferecidas aos participantes tinham a mesma quantidade de calorias, açúcar, fibra, gordura e hidratos de carbono, mas os participantes podiam escolher qual a quantidade que lhes apetecia comer. O grupo de pessoas da dieta ultraprocessada ingeriu, em média, mais 500kcal/dia, essencialmente à custa de maior quantidade de hidratos de carbono e gordura. Sob esta dieta, os participantes também comiam mais depressa e aumentaram rapidamente de peso. A dieta minimamente processada, apesar de mais saudável, obrigava a maior perda de tempo, quer na preparação, quer na alimentação em si. Assim, e num mundo cada vez mais frenético como o que vivemos atualmente, o tempo para preparar e comer uma refeição torna-se, cada vez mais, valioso.

Os mecanismos de saciedade estão mais relacionados com o volume ingerido do que com a densidade energética dos alimentos. Assim, ao serem energeticamente mais densos (com mais calorias/g), os alimentos ultraprocessados levam, de forma inconsciente, a um maior consumo energético. Por outro lado, a presença de hidratos de carbono refinados vai estimular a produção de insulina, que promove a deposição do excesso de energia sob a forma de tecido adiposo. De igual modo, o elevado conteúdo de açúcares e gorduras, ao mesmo tempo que torna os alimentos mais saborosos, também altera os mecanismos de recompensa cerebral, levando a comportamentos do tipo 'aditivo' e a hiperfagia (aumento do consumo alimentar). As poderosas campanhas de marketing deste tipo de alimentos e o aumento gradual das porções contidas em cada embalagem também estimulam, de forma autónoma, o hiperconsumo.

Outra teoria com grande aceitação no meio académico sugere que o organismo humano tem uma necessidade preferencial de proteínas. Dado que os alimentos ultraprocessados têm densidades proteicas mais baixas, isto vai promover o aumento do consumo de calorias até satisfazer a necessidade do organismo. A espécie humana, como muitas outras, tem um apetite preferencial para proteínas e ao diluirmos a densidade proteica dos alimentos acabamos por consumir mais energia para conseguir obter a proteína necessária.

As proteínas são os blocos de construção de todas as células humanas e, como tal, são absolutamente fundamentais para a sobrevivência do organismo. Alguns estudos também concluíram que a alimentação rica em proteínas, desde a primeira refeição que ingerimos, está associada a uma diminuição do consumo calórico total durante todo o dia.

A conveniência dos produtos ultraprocessados e a sua facilidade em serem comprados e consumidos também estimula a alteração dos padrões clássicos de alimentação, aumentando o consumo de snacks e a alimentação não exclusiva (ex.: comer a ver televisão). Este padrão alimentar não consequente está associado a comer mais rapidamente e de forma desatenta, de tal forma que não conseguem ser adequadamente produzidos e interpretados os sinais biológicos de controlo do apetite e da saciedade.

A obesidade é, indiscutivelmente, uma doença multifatorial e diversos elementos contribuem para o seu desenvolvimento. Os padrões alimentares, os níveis de atividade física, uma série de traços genéticos, a presença de poluentes orgânicos, a higiene do sono, o microbioma e muitos outros fatores conduzem ao desenvolvimento desta doença. No entanto, o apetite humano por proteínas, a palatabilidade, a conveniência e disponibilidade das comidas ultraprocessadas e o poderoso marketing utilizado pela indústria alimentar são alguns dos aspetos mais determinantes no que ao aumento das calorias ingeridas diz respeito e, consequentemente, do risco de obesidade que assistimos no mundo ocidental.

Por tudo isto, a indústria alimentar tem de estar consciente destas associações entre os alimentos ultraprocessados e a obesidade. Além de um problema importante de saúde pública, são cada vez mais estudados os mecanismos que levam ao desenvolvimento da obesidade e a sociedade está, nos dias de hoje, mais alerta do que nunca para os comportamentos e consumos de risco. Assim, é importante aumentar a oferta de produtos orgânicos, integrais e mais saudáveis, de forma a contribuir para uma população mais sadia e com maior longevidade.

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