A crise no mercado dos laticínios não é de hoje. Há já algum tempo que os produtores se queixam do preço do leite. E quando a produção tem problemas, estes depois tendem a seguir para a indústria.
Recentemente foi disponibilizado o Relatório da Subcomissão Específica para o setor do leite e produtos lácteos. Em traços gerais, o relatório conclui que o baixo preço do leite que se verifica em Portugal, face à média europeia, é o resultado da erosão estrutural da cadeia de valor do setor, a qual carece de uma atuação estratégica a médio prazo, a implementar pelos elos da cadeia envolvidos: produção, indústria, distribuição e agentes de política pública. Quanto às propostas de atuação, serão devidamente implementadas pelo Ministério da Agricultura, em estreita articulação com o setor e com os agentes da cadeia de valor.
A isto acrescenta que a produção e a indústria são mais especializadas, a primeira praticamente dedicada em exclusivo à atividade leiteira, e a segunda com pouca diversidade de produtos, o que implica menor capacidade de adaptação e resposta às pressões no preço. Por outro lado a cadeia de valor nacional é muito dependente de um produto - leite líquido - e de um canal de escoamento – a grande distribuição. Uma avaliação preocupante é a de que a capacidade do setor em reduzir custos, nomeadamente na parte da produção é mais difícil nas atuais condições de mercado, e porque está direcionada para a produção de um produto (setor muito especializado a montante).
Face a tudo isto, o relatório alerta para o fato de ser necessário melhorar a sustentabilidade económica da atividade da produção e indústria. Algo que deve ser feito através de uma análise da estrutura de custos – diretos e indiretos – resultantes da atividade ou de contexto. A par disso é necessário apostar a diversificação de produtos e mercados, a par da otimização dos custos, por forma permitir que a indústria diminua o seu grau de dependência e aumentar capacidade de viabilidade económica.
Este é o resultado de um documento de diagnóstico que teve a participação ativa e os contributos das várias entidades envolvidas ao longo das cinco reuniões da Subcomissão, e que integra propostas concretas de atuação para o setor. Mas e o que dizem as associações do setor? Quem trabalha no terreno?
Na opinião de Idalino Leão, presidente da AGROS, o setor dos laticínios é muito relevante no panorama do agroalimentar nacional, sendo que do lado da produção ocupa cerca de 4 mil produtores, e do lado da indústria 344 operadores responsáveis por mais de 6400 postos de trabalho. Já Carlos Neves, secretário-geral da APROLEP, considera que é um setor organizado, que se modernizou e tem evoluído no sentido da eficiência, segurança alimentar, qualidade do leite, bem-estar animal e pegada ecológica mas que tem perdido produtores por não ser economicamente rentável. “A indústria de leite e produtos lácteos nacional gera cerca de 1.460 milhões de euros por ano, o que representa 1,7% da indústria transformadora e é a terceira indústria mais valorizada no seio da indústria alimentar com 11 % das vendas”, refere Maria Cândida Marramaque, diretora-geral da ANIL, acrescentando que é um setor que emprega diretamente cerca de 6400 pessoas, 7% do emprego na indústria alimentar, em 344 empresas, dispersas pelo território nacional.
Uma avaliação realista que decorre dos desafios que o setor enfrenta. Sendo o mais imediato, afirma Carlos Neves, o ser economicamente sustentável para ter futuro. “Isso passa por apostar em produtos de valor acrescentado mas, sobretudo, por valorizar todos os produtos, a começar pelo leite UHT que não pode ser usado como 'isco' dos supermercados para atrair consumidores”, acrescenta. Já a AGROS considera que o desafio mais desafiante e complexo é o da competitividade e do crescimento.
“Com efeito, os incrementos dos custos de produção da fileira têm aumentado em linha com a inflação industrial em Portugal. Aquilo que é exigido ao setor é a produção de alimentos de grande qualidade, respeitando normas muito exigentes de segurança alimentar, ambiente e bem-estar animal, mas praticando preços muito acessíveis. Este é um paradigma que tem que mudar, o preço do leite tem que subir”, afirma Idalino Leão.
No primeiro dia de junho de 2022, a APROLEP enviou um alerta sobre o risco de extinção da produção de leite. Em causa os riscos de produção versus o preço de venda. Só para se ter uma ideia, entre maio de 2021 e maio de 2022, o preço do gasóleo agrícola aumentou 97%, o adubo 140%, o milho 77% e o bagaço de soja 45%. A associação fez as contas e isso representou um aumento no custo de alimentação das vacas de 59% e cerca de 53% no custo total para produzir um litro de leite. Do outro lado da moeda – das receitas – o preço do leite vendido aumentou apenas 23%. Ou seja, há produtos que estão a pagar mais do que 50 cêntimos por quilo de ração comprada e a vender o leite a um preço médio de 40 cêntimos por litro no continente português e 33 cêntimos nos Açores, enquanto na Holanda o preço de referência para junho atinge os 56 cêntimos por litro de leite.
A tudo isto, acresce as consequências das alterações climáticas que, entre outras coisas, estão a levar a uma diminuição da produção de forragem. Segundo a APROLEP, alimentar as vacas com o atual preço do leite, é insustentável. O que leva a associação a propor a indexação do preço do leite à evolução dos custos de produção. No imediato, compete à indústria e à distribuição subirem, com urgência, o preço do leite ao produtor para 50 cêntimos, de modo a salvar a produção de leite em Portugal, caso contrário ficam sem fornecedores. Opinião partilhada pelo presidente da AGROS que afirma que “é urgente que os preços na produção subam, sob pena de colocarmos em causa a nossa soberania alimentar”. Um objetivo que, na opinião do Idalino Leão, objetivo tem que ser assumido e partilhado por todos os elos da cadeia agroalimentar, trazendo mais equidade e justiça para todos.
Carlos Neves afirma mesmo que a avaliação negativa dos últimos 12 anos, "onde estivemos sempre abaixo da média comunitária”, colocou Portugal no último lugar entre os 27 Estados-membros.
É certo que no ano passado o Governo anunciou um conjunto de medidas de apoio que se complementam e visam contribuir para o aumento da rentabilidade e resiliência do setor. Medidas de apoio à tesouraria das explorações, à modernização das explorações e criação de valor na transformação, e de apoio ao reforço da organização da fileira. No entanto, a avaliação geral das mesmas não é assim tão positiva. “As ajudas são poucas, limitadas e muitas vezes de fachada”, afirma Carlos Neves, que acrescenta que antecipar ajudas, dar crédito ou isenção de IVA, são apenas medidas de tesouraria que se limitam a empurrar o problema para a frente, sem vermos medidas para aumentar o rendimento. O que, na opinião do secretário-geral da APROLEP, só será possível se o Governo se empenhar para que indústria e distribuição paguem à produção um "preço justo" que pague os custos de produção e o trabalho dos produtores de leite e suas famílias.
Idalino Leão, por seu lado, tem uma visão menos pessimista das medidas do Governo. Para o presidente da AGROS, o Executivo tem procurado minimizar a escalada de preços, através de apoios diretos e extraordinários, desde logo, aos produtores de leite, e isso é positivo. No entanto, acrescenta, a magnitude da escalada dos custos de produção exigiria um pacote orçamental mais robusto e mais célere, de forma que as ajudas cheguem rapidamente aos produtores. “A título de exemplo, as ajudas propostas para os produtores de leite em Portugal são 33% inferiores às decididas em Espanha, enquanto o apoio extraordinário ao gasóleo agrícola no país vizinho é de 20 cêntimos por litro e, em Portugal, é pouco mais de 3 cêntimos por litro”, refere, acrescentando que este é o momento político de retribuir o esforço que os agricultores fizeram aquando dos confinamentos, pois continuaram a trabalhar produzindo alimentos seguros para todos os consumidores. “Esta é a hora de ver reconhecido o nosso esforço”, conclui de forma categórica.
A todas estas dificuldades acrescem as provocadas pela guerra no Leste da Europa. Sobre isso, Carlos Neves refere que a pandemia causou dificuldades pontuais ou localizadas, por exemplo com produtores que abasteciam queijarias e que dependiam do mercado de turismo e restauração. Já no que concerne à mão-de-obra foram “dificuldades pontuais” e ainda “algum aumento de custos”. “A guerra na Ucrânia causou um enorme aumento de custos com energia, rações, adubos e demais fatores de produção, que apenas tem tipo resposta atrasada no preço do leite ao produtor, o que causa um défice permanente”, constata o secretário-geral da APROLEP.
Idalino Leão faz uma avaliação aprofundada, começando ainda na pandemia, altura em que “o setor dos laticínios continuou a laborar, como aliás aconteceu com todo o complexo agroalimentar, de forma a disponibilizar bens imprescindíveis de consumo diário das famílias”. Como refere o presidente da AGROS, tratou-se de um grande esforço de todos os intervenientes da fileira, desde os produtores de leite, passando pelos trabalhadores da indústria e da distribuição.
Foi um período da história de Portugal (e do mundo) caraterizado por “confinamentos, dificuldades de gestão de recursos humanos devido aos isolamentos obrigatórios e complicações logísticas inesperadas”. No entanto, realça Idalino Leão, podemos dizer que pior cenário tem sido o pós pandemia e agora, mais recentemente, após a guerra na Ucrânia. “Com efeito, um movimento em alta dos preços das matérias-primas que já se vinha a registar desde o princípio de 2021, escalou exponencialmente com o início do conflito no final de fevereiro. Matérias-primas para alimentação animal (cereais), fertilizantes, energia e materiais para embalagens sofreram aumentos de custo inimagináveis há alguns meses atrás, não se vislumbrando uma estabilização a curto prazo”, constata.
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